Ensaio sobre o esquecimento

"A vida que a gente nem leva mais
Nem lembra mais
E tanto fez
Já tanto faz
Você e eu não somos mais"
(Daniel Chaudon)

A gente vai esquecer. 

A gente vai esquecer de todas as brigas, de todas as crises de riso — a gente vai esquecer, principalmente, de como começaram as crises de riso. A gente vai esquecer das idas ao parque, dos cafés da manhã aos domingos, dos passos acompanhados em uma cidade desconhecida. A gente vai esquecer do que a gente prometeu que não iria — e não vai doer, pelo menos não para sempre. A gente não vai esquecer por raiva ou mágoa.  A gente vai esquecer, inclusive, de onde vinham esses sentimentos. A vida vai seguir. Inevitavelmente, a gente também. 

A gente vai descumprir acordos, voltar atrás nos planos. Eu vou viver sem planos. Você, eu sinceramente não sei. A gente vai esquecer os detalhes do nosso rosto. Eu não vou ser a primeira pessoa a dar oi para as suas novas rugas, você não ser a primeira pessoa a dizer adeus para o meu último cabelo castanho. A gente vai esquecer as datas que um dia foram importantes e elas vão ser apenas dias comuns. A gente vai esquecer das primeiras vezes e das últimas. A gente vai parar de contar os dias que faltam para o reencontro. Talvez a gente nem se veja mais. A gente vai perder a importância. 

Você vai conhecer um mundo que eu não vou pisar com os meus pés. Eu vou escrever um livro que não vai ser sobre você. A gente vai esquecer das nossas manias, do som das nossas vozes. A gente vai esquecer que um dia já nos chamamos de a gente. 

Você vai ser você, uma versão que não me será apresentada, e eu vou te chamar pelo nome. Eu vou ser a mesma pessoa, mas esse segredo é possível que você nunca descubra. Você vai achar que já não me conhece tanto. Eu vou achar que nunca te conheci. A gente vai mudar e reunir uma nova coleção de memórias que não vai ter a gente. A gente acha estranho porque ainda não viveu, mas… você vai ver. 

Esquecer não é esforço. Esquecer não dói.

Um curto monólogo tímido para a timidez

E agora? Agora a gente tenta e falha. Parecia tão fácil. Treinamos tanto os nossos discursos, encenamos tantos debates e tão acalorados. Quando finalmente temos público, a voz falha, a barriga dói, a ansiedade corta as palavras ao meio, as mãos se recolhem, frias e trêmulas, aos bolsos da calça. E por que? Os nossos discursos de agradecimento pelo reconhecimento feitos embaixo do chuveiro são tão prolixos, comoventes, certeiros e desenrolados. O nosso senso crítico é afiado, pontiagudo. O nosso senso crítico é justo. Nós temos ideias premiáveis, somos seres humanos tão humanamente apreciáveis, apesar das incontáveis falhas. Olha pra mim, eu estou falando com você e é sobre a gente. Não faz assim, não se afasta, não revira os olhos: desembaça esse espelho, olha pra você e pra mim. Nos preocupamos com o futuro do mundo. Nos importamos com as dores do próximo. Ligamos para perguntar se está tudo bem. Ligamos só para isso. Queremos saber se aquele problema foi solucionado, se a compressa fez efeito, se o passado finalmente passou. Queremos ajudar. Somos boas, temos a alma quase leve, temos a vida no sonho e muito carinho no coração. Gostamos de frutas colhidas do pé, gostamos de lua cheia, de tardes ensolaradas e de chá de maçã. Somos mansas escondidas em camadas de cobertor em tempo frio. Somos mansas estendidas em uma rede numa tarde de domingo. Falamos tão bem para a multidão que criamos, mas ficamos mudas olhando para as pessoas de carne e osso. O mundo nos assusta. As pessoas diferentes de nós possuem um ar meio vilão. Vivemos tão intensamente para dentro, que o de fora nos atinge como se retirassem o teto da nossa casinha de tijolos marrons. Somos tão ingênuas: conservamos o segredo nosso. Eu cochicho no seu ouvido, você cantarola no meu, que é pra ninguém ouvir.

O mundo não é sutil. Nós somos.

Do avesso


Sabe, Zé, eu cheguei a pensar que amor era questão de merecimento e que, cuidando direitinho, não tinha como haver jeito de dar errado. Cheguei a matutar com a vida que amor só chega pra quem conquista, como um desafio que vem antes do prêmio. Matutei que o amor era o grande motivo de tudo. 

Era assim, Zé, dentro da minha cabeça, era assim: quanto mais ocê sofria e apanhava e se doava e se rasgava e se remendava e remendava o outro e tinha paciência e falava baixo e abraçava forte e cantava manso e acordava do pesadelo e preparava chá de gengibre pra gripe e tinha cãibra de dormir abraçado só pra não acordar o outro o tal do amor ia ficando maior e mais forte e mais profundo que raiz de árvore da vida e quanto mais ocê conseguia crer crer crer mais que deus mais que darwin mais amor tinha porque amor só existia se ocê tivesse fé muita fé e se ocê acreditasse e se ocê colocasse todo o seu coração naquilo e seu coração inchava e ficava maior pra caber mais amor mas também num podia de ter muita expectativa do amor não porque se esperasse na porta o amor chegar ele num vinha.

E era assim que eu seguia sendo, Zé, para além do sertão. E foi assim que eu cheguei aqui, tropeçando na realidade das coisas que não são amor, encachaçado, virado do avesso. Foi assim que eu vi meu avesso pela primeira vez, Zé, ocê tá vendo ele aí? Nem é bonito, né Zé, esse meu lado de cá. É feio que dói. E ele dói, dói, dói. Mas ocê não se espante viu, Zé, que mal mesmo eu num faço não. 

Ocê pode ir falando as suas coisas daí, Zé, que eu te ouço enquanto procuro linha e agulha e penso num jeito de virar pro lado que ocê me conhece, ocê me ajuda? E depois ocê me abraça e dá uns tapas de carinho no ombro pra eu me alembrar de como é sentir alguém me tocar sem que eu sangre e sangre e peça desculpas porque, poxa, que vergonha ser assim só veias e artérias pulsantes e órgãos pendurados, ser de fora o que era pra ser de dentro. 

Ocê num tem nem coragem de se aproximar, né, Zé. Fecha os óio, Zé. Fecha os óio e vem, que ainda sou eu, seu Miguelinho. Eu mordo não, faço mal nenhum pro’ocê. Pode confiar, Zé. Ocê se achegue que eu quero reconhecer seu calor, que eu quero sentir ocê no dentro de fora de mim. Vem, que eu sinto tanto frio. 

A vida é confusa, né, Zé. Ocê não acha? 

Eu saí por aí pra mode provar pro mundo que era todo ele é que tava errado, que eu sabia, eu sabia há tanto tempo! Eu saí pra gritar de alegria, pra falar do amor que eu achava que sentia mas só sonhava e sonhava e cuidava do sonho e alimentava o sonho e fazia dele maior que eu, que ocê, que as estradas que percorri descalço com os pés no chão batido. E foi por isso que eu saí naquele dia batendo portas, dizendo que eu sabia e que mostraria pr'ocê e pra Madalena que eu tava era certo, que amor era como os bichos que a gente resgata da crueldade do abandono e enche de cuidado e ama estrupiado, ama com as tripas aparecendo e por amar tanto é que gente cuida e não pensa em não cuidar e cuida tão bem e diz que vai ficar tudo bem que vai passar porque passa, sempre passa, porque eles merecem o céu, porque é só dar amor e colher gratidão por toda a vida deles e da nossa. 

Zé, amor nunca foi recompensa de cuidado, ocê já sabia? Ocê me pediu pra eu não sair assim, pra eu não correr descalço, pra botar uma bota, pra pegar um casaco, que roupa não era só fantasia. Era por que ocê já sabia, né Zé? Zé, ocê percebe o que eu digo agora? Ocê sabe? Eu saí daqui pra percorrer quilômetros de dia e de noite e chegar no fim da fila da barraca dos beijos sinceros. Foi pra lá que eu fui, com a mochila cheia de sonhos e um coração que era metade real, metade ilusão. Quando chegou a minha vez eu me despojei de todo o peso, de toda a roupa, de toda pele, de todas as camadas que me afastavam daquele beijo de verdade. E, olhando para mim, daquele jeito tão sincero e tão cru e tão eu como jamais pude ser e fui só ali, naquele momento, o amor não me quis. 

Zé, ocê esquece a dor me abraça. Que o frio de agora é insuportável.

Escrevo porque viver não basta

Tirinha: Albert Bennet


Sem ter você, já não sei para quem escrevo. Mas insisto. Insisto porque é o mínimo que eu poderia fazer do tanto, do todo que você me ensinou. Insisto porque aprendi a ir, mesmo sem fé, mesmo sem forças, mesmo sem norte, para tentar encontrá-la, a fé fujona, a fé independente, perdida no meio do caminho e ensinar a ela o atalho de volta para casa. 

Escrevo porque você me ensinou a caminhar sem segurar sua mão. Porque você me ensinou a ir com medo, a ir insegura, na corda bamba, correndo para não perder o equilíbrio, mesmo com risco de cair, mesmo com desejo de ficar, mesmo assim e ainda assim, ir. 

E depois de chegar, exausta, rir. Do percurso, do anseio e de tudo que, seguindo em frente, ficou para trás, tão pequeno, tão insignificante e tão menor que nós. E permitir sentir alívio, sentir dor, sentir raiva. Sentir, só sentir. Sem filtro, sem boas maneiras, sem etapas catalogadas, sem passo a passo, sem manual, sem previsão. Sentir e chorar como gente que sente e que chora, com força, com catarro, com pigarro, com tosse seca, com queixo trêmulo e boca torta, com afogamento de mágoas que não aprenderam o jeito certo de usar as bóias. 

Escrevo porque da minha boca já não sai palavra, só uma espécie de som agudo, um chiado irritante, umas queixas que não interessam a ninguém, nem a mim – como um apito, que nem mesmo quem assopra quer ouvir. Escrevo porque eu tenho uma bola de meia atravancada na minha garganta, que só engulo depois de cuspir letras. E só cuspo para não morrer engasgada. 

Escrevo porque, na sua ausência, o mundo segue ligeiro e não há o tempo de contemplar os pássaros, de fotografar os pombos enfeitando os fios de alta tensão. Escrevo para abrir um buraco no espaço e rasgar o bucho das horas, para fazer caber, com todo o esforço, a lembrança de uma brisa amena tocando meu rosto. Escrevo porque sinto falta dos dias passando lentos, dos pássaros compondo uma nova canção para poucos (e achar que era só para nós), dos pombos sendo a melhor imagem de um domingo à tarde vivido como devem ser vividos os domingos à tarde.

Escrevo porque já não tenho com quem repartir o silêncio, a voz do infinito, o diálogo sem som. Escrevo, sobretudo, para te ouvir falar. Depois dos meus ais, vinham os seus mais. Então, continuo. E enquanto insisto, estico os ouvidos, para ver se te ouço. Rendida no colo da esperança, como as duas únicas sobreviventes de um dilúvio, escrevo porque sei que, depois do ponto final, o silêncio que virá é seu.

Sonhos extraviados

Da série: 30 formas de amor em 30 dias

Nas noites que não sonho, para onde vai meu pensamento? Será que ele te encontra? Será que, flutuando no infinito, a gente se esbarra? O nosso amor sempre foi meio fora de órbita, meio sem lógica, avesso ao relógio. Não seria espanto qualquer. O desenrolar do tempo não soube contar a nossa história. Nossos ombros se encostavam em momentos opostos: eu saindo, você entrando. Eu partindo, você ficando. Mas quando a história é ruim, a gente conta de novo. Quando a tristeza é muita, a gente enfeita a amargura com um conto. Sempre tem um jeito. Nós éramos tão bons que chegamos a ser demais para este mundo. Nos vemos no próximo.

Eu fecho os olhos, você ainda dança

Da série: 30 formas de amor em 30 dias

Sonhei com você. Foi na noite passada. Você usava um vestido azul turquesa bem curto, sapatos de salto fino e o cabelo preso bem no topo da cabeça. Eu sei, parece mais uma bailarina do Faustão. Mas era você. Sem pele, sem osso, só encantamento. Você dançava sozinha, olhava para mim. Você se entregava ao silêncio de uma sala de espelhos, enquanto eu gritava emudecido. Você dançava para mim enquanto eu ia do céu ao inferno dezenas de vezes. Eu ali e você de novo. Um rodopio, uma quebrada de quadril e eu já não era meu. Acordei buscando o telefone para te ligar, quando lembrei que já nos perdemos há muitas rotações. Seria estranho marcar um café? Seria estranho segurar a sua mão? Seria estranho dizer que, mesmo depois de ser, o amor ainda é? Não quero acordar.

Colo de vô

Da série: 30 formas de amor em 30 dias

Quanto mais velho eu fico, menos consigo falar de amor, esse sentimento besta. E essas suas perguntas deixam seu velho desajeitado. É que a vida, meu neto, a vida desconstrói nossas crenças uma a uma. É preciso dominar a arte da reconstrução mais do que compreender a engenharia dos sentimentos. Mas isso eu não quero que você entenda. Continue aprendendo a somar e dividir. É depois de velho que a gente aceita que não sabe. Eu sei menos do que você, meu guri, e já não me escondo atrás de vaidades. Seu avô não descobriu para onde vai o amor quando ele acaba. E você, meu menino levado, você sabe se já inventaram um cemitério de sentimentos? Tenho umas velas para acender por lá. Sentimentos perdidos me assustam mais do que almas penadas.

Para quem vier a me amar

Da série: 30 formas de amor em 30 dias

Me decepcione. Me machuque por acaso. Me chacoalhe os ombros. Me dê motivos para brigar. Tenha mau hálito e cabelo irremediavelmente despenteado pela manhã. Tenha manias irritantes, um olho vesgo, uma perna mais curta, uma pinta cabeluda, uma cicatriz importante. Segure firme minhas coxas, arranhe de leve minhas costas, invente um apelido desconcertante. Me queira perdidamente em uma segunda de manhã. Não me queira às vezes. Tente me odiar para me amar mais do que antes. Me acorde do sonho, me tire de dentro dos livros, me faça mais do que um personagem de seriado. O real é tão distante.

Querido anônimo,

Da série: 30 formas de amor em 30 dias

Faz tempo que você não me escreve. Para ser mais exata, já são quatro anos e três meses sem uma linha sequer de seus garranchos. Você se esforçava para ser caprichoso, eu sei. Havia alguns desenhos de flores espinhosas envolvendo as suas palavras confusas. Eu sinto falta das suas palavras, das poucas que eu consegui entender. Você escrevia sobre amor, eu acho, me chamava de Helena. Eu sou uma espécie de louca por te responder? Devo ser, pois nem me chamo Helena. E você pode ser qualquer pessoa. Gosto de pensar que você é o palhaço trapezista mais incrível que já passou pelo vilarejo. Mas você fugiu com o circo e ficou tão difícil a nossa correspondência! Quando for possível, me responda. Meu endereço é o mesmo. 

Sempre sua, 
Helena

Bem-querer

Da série: 30 formas de amor em 30 dias

O seu sorriso é de amiga. O seu abraço é de amiga. A forma como você fala ao telefone é de amiga. Você se comove com meus problemas e me machuca com a sinceridade de amiga. O seu querer bem quase me atravessa. Você me serve vinho em uma caneca de café. Você me leva para as festas de aniversário das suas tias-avós. Você me recebe na porta de pijamas. Olho para os seus olhos de amiga e quase acredito. O seu consolo é de amiga. As mãos que exibem os esmaltes pretos descascados e me oferecem um pouco de pipoca são de amiga. Assistir "Dançando na Chuva" em uma tarde de domingo é coisa de amiga. Mas o cheiro do seu cabelo sempre foi de namorada.