Era assim, Zé, dentro da minha cabeça, era assim: quanto mais ocê sofria e apanhava e se doava e se rasgava e se remendava e remendava o outro e tinha paciência e falava baixo e abraçava forte e cantava manso e acordava do pesadelo e preparava chá de gengibre pra gripe e tinha cãibra de dormir abraçado só pra não acordar o outro o tal do amor ia ficando maior e mais forte e mais profundo que raiz de árvore da vida e quanto mais ocê conseguia crer crer crer mais que deus mais que darwin mais amor tinha porque amor só existia se ocê tivesse fé muita fé e se ocê acreditasse e se ocê colocasse todo o seu coração naquilo e seu coração inchava e ficava maior pra caber mais amor mas também num podia de ter muita expectativa do amor não porque se esperasse na porta o amor chegar ele num vinha.
E era assim que eu seguia sendo, Zé, para além do sertão. E foi assim que eu cheguei aqui, tropeçando na realidade das coisas que não são amor, encachaçado, virado do avesso. Foi assim que eu vi meu avesso pela primeira vez, Zé, ocê tá vendo ele aí? Nem é bonito, né Zé, esse meu lado de cá. É feio que dói. E ele dói, dói, dói. Mas ocê não se espante viu, Zé, que mal mesmo eu num faço não.
Ocê pode ir falando as suas coisas daí, Zé, que eu te ouço enquanto procuro linha e agulha e penso num jeito de virar pro lado que ocê me conhece, ocê me ajuda? E depois ocê me abraça e dá uns tapas de carinho no ombro pra eu me alembrar de como é sentir alguém me tocar sem que eu sangre e sangre e peça desculpas porque, poxa, que vergonha ser assim só veias e artérias pulsantes e órgãos pendurados, ser de fora o que era pra ser de dentro.
Ocê num tem nem coragem de se aproximar, né, Zé. Fecha os óio, Zé. Fecha os óio e vem, que ainda sou eu, seu Miguelinho. Eu mordo não, faço mal nenhum pro’ocê. Pode confiar, Zé. Ocê se achegue que eu quero reconhecer seu calor, que eu quero sentir ocê no dentro de fora de mim. Vem, que eu sinto tanto frio.
A vida é confusa, né, Zé. Ocê não acha?
Eu saí por aí pra mode provar pro mundo que era todo ele é que tava errado, que eu sabia, eu sabia há tanto tempo! Eu saí pra gritar de alegria, pra falar do amor que eu achava que sentia mas só sonhava e sonhava e cuidava do sonho e alimentava o sonho e fazia dele maior que eu, que ocê, que as estradas que percorri descalço com os pés no chão batido. E foi por isso que eu saí naquele dia batendo portas, dizendo que eu sabia e que mostraria pr'ocê e pra Madalena que eu tava era certo, que amor era como os bichos que a gente resgata da crueldade do abandono e enche de cuidado e ama estrupiado, ama com as tripas aparecendo e por amar tanto é que gente cuida e não pensa em não cuidar e cuida tão bem e diz que vai ficar tudo bem que vai passar porque passa, sempre passa, porque eles merecem o céu, porque é só dar amor e colher gratidão por toda a vida deles e da nossa.
Zé, amor nunca foi recompensa de cuidado, ocê já sabia? Ocê me pediu pra eu não sair assim, pra eu não correr descalço, pra botar uma bota, pra pegar um casaco, que roupa não era só fantasia. Era por que ocê já sabia, né Zé? Zé, ocê percebe o que eu digo agora? Ocê sabe? Eu saí daqui pra percorrer quilômetros de dia e de noite e chegar no fim da fila da barraca dos beijos sinceros. Foi pra lá que eu fui, com a mochila cheia de sonhos e um coração que era metade real, metade ilusão. Quando chegou a minha vez eu me despojei de todo o peso, de toda a roupa, de toda pele, de todas as camadas que me afastavam daquele beijo de verdade. E, olhando para mim, daquele jeito tão sincero e tão cru e tão eu como jamais pude ser e fui só ali, naquele momento, o amor não me quis.
Zé, ocê esquece a dor me abraça. Que o frio de agora é insuportável.
Lindo!
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