Não te peço nada

"Quem sabe um dia
Por descuido ou poesia 
Você goste de ficar"
(Chico Buarque)


Eu sempre soube que ia passar. Acontece que saber é diferente de esperar. Eu sabia, mas não esperava.  Meio patético dizer, mas fui pega de surpresa. Patético porque o sumiço foi aos poucos, como se desbotasse a fotografia da gente num domingo no parque. O colorido foi virando sépia. Não é que eu não notava, é que, por incapacidade ou coerência, eu não percebia o que significava a gente ir esmaecendo assim. Podia ser a ação do tempo, do sol, da poeira, podia ser poesia, tudo o que fosse que não significasse você indo embora. Poxa, eu sabia. E saber me tira o direito de pedir para você ficar. Você ficaria? Isso não é pergunta de se fazer, eu sei, eu sempre soube. Tem tanta coisa no mundo lá fora te esperando, coisas tão imensas, com tantas pessoas que te precisam perto, que te fazem questão, que passam com você centenas de domingos no parque e abrem centenas de garrafas de vinho e contam dezenas de causos e riem contigo de milhares de besteiras e te flagram em cenas que te fazem tão você. Eu sei. Você iria, hoje ou amanhã. Mas o amanhã nunca vem, ou nunca vinha, que eu pensei que seria sempre assim. Que esperaríamos num multiplicar de últimos dias, de últimas vezes, de últimos primeiros beijos e primeiros toques e últimas noites e primeiras manhãs. Todos aqueles primeiros últimos momentos que nos dava taquicardia: eu sentia no teu coração e você no meu, numa mistura que por ter fim era ainda mais visceral e homogênea. Eu sabia, eu sei, eu sempre soube. Repito muitas vezes para não ter que ouvir de você. Por favor, não me diga. Eu não quero ter que me preocupar com o depois. O lençol amarrotado, a marca dos seus pés no chão da sala, os seu prato e talheres sujos na pia da cozinha. Tudo o que eu nunca tive que pensar e que agora existe mais do que o lençol, o piso da sala, o prato e os talheres. Tudo isso com que eu não me importava: as marcas, as pegadas, as digitais. Olha, por favor, não esqueça a escova de dentes. Escovas de dentes ficam para sempre à espera do dono na pia do banheiro. Eu sempre soube, mas nunca esperei que chegasse. É que quando a gente percebe já está amando e quem ama sempre acredita em uma força maior que seja capaz de parar tudo, que seja capaz de fazer ficar. Eu sei, não era para ser amor. Eu sempre  soube. Mas, por favor, não me fale. Eu não quero ter que pensar o que fazer com o daqui pra frente e como fazê-lo sem olhar o que ficou para trás. Sempre que algo se quebra paramos para recolher os cacos. Mas eu sei, não se preocupe, eu sempre soube. Hoje ou amanhã aconteceria. E aconteceu. Acontece, é assim mesmo. Mas é que quando a gente quer que alguém fique, a gente faz de tudo, até se repetir sem parar, até pronunciar longos discursos mudos e marejar os olhos e sussurrar engasgados e sinceros "eu sei". E saber, mas nunca, nunca esperar. 

4 comentários:

  1. vir aqui significa deixar de ser turrao. nao sei se to preparado. bem ou mal acabo amolecendo. tá lindo, pipoca! escreva mais. mto, mto mais!

    =*******

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  2. tenho aqui uma segunda casa, ainda que mais tristeza, ainda que mais alegria, ainda que mais inquietações...

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  3. Marcia, aqui é a sua casa. Pode tirar os sapatos e se jogar nas almofadas de nuvens. É um prazer dividir esse espaço com pessoas como você. :}

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