Escrevo porque viver não basta

Tirinha: Albert Bennet


Sem ter você, já não sei para quem escrevo. Mas insisto. Insisto porque é o mínimo que eu poderia fazer do tanto, do todo que você me ensinou. Insisto porque aprendi a ir, mesmo sem fé, mesmo sem forças, mesmo sem norte, para tentar encontrá-la, a fé fujona, a fé independente, perdida no meio do caminho e ensinar a ela o atalho de volta para casa. 

Escrevo porque você me ensinou a caminhar sem segurar sua mão. Porque você me ensinou a ir com medo, a ir insegura, na corda bamba, correndo para não perder o equilíbrio, mesmo com risco de cair, mesmo com desejo de ficar, mesmo assim e ainda assim, ir. 

E depois de chegar, exausta, rir. Do percurso, do anseio e de tudo que, seguindo em frente, ficou para trás, tão pequeno, tão insignificante e tão menor que nós. E permitir sentir alívio, sentir dor, sentir raiva. Sentir, só sentir. Sem filtro, sem boas maneiras, sem etapas catalogadas, sem passo a passo, sem manual, sem previsão. Sentir e chorar como gente que sente e que chora, com força, com catarro, com pigarro, com tosse seca, com queixo trêmulo e boca torta, com afogamento de mágoas que não aprenderam o jeito certo de usar as bóias. 

Escrevo porque da minha boca já não sai palavra, só uma espécie de som agudo, um chiado irritante, umas queixas que não interessam a ninguém, nem a mim – como um apito, que nem mesmo quem assopra quer ouvir. Escrevo porque eu tenho uma bola de meia atravancada na minha garganta, que só engulo depois de cuspir letras. E só cuspo para não morrer engasgada. 

Escrevo porque, na sua ausência, o mundo segue ligeiro e não há o tempo de contemplar os pássaros, de fotografar os pombos enfeitando os fios de alta tensão. Escrevo para abrir um buraco no espaço e rasgar o bucho das horas, para fazer caber, com todo o esforço, a lembrança de uma brisa amena tocando meu rosto. Escrevo porque sinto falta dos dias passando lentos, dos pássaros compondo uma nova canção para poucos (e achar que era só para nós), dos pombos sendo a melhor imagem de um domingo à tarde vivido como devem ser vividos os domingos à tarde.

Escrevo porque já não tenho com quem repartir o silêncio, a voz do infinito, o diálogo sem som. Escrevo, sobretudo, para te ouvir falar. Depois dos meus ais, vinham os seus mais. Então, continuo. E enquanto insisto, estico os ouvidos, para ver se te ouço. Rendida no colo da esperança, como as duas únicas sobreviventes de um dilúvio, escrevo porque sei que, depois do ponto final, o silêncio que virá é seu.

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