Raspas e restos

O resto das coisas, eu me digo baixinho, você ainda tem todo o resto das coisas. O que sobrou de sentimento desde a sua última passagem por aqui, um pouco de brilho nos olhos desde o início da frieza dos tempos, um tantinho de fé no pote de emergência, qualquer migalha de amor nas entranhas do peito, uma brecha de poesia nas entrelinhas. Para não enlouquecer sem você, me agarro àquela lembrança de que existe vida lá fora e o mundo não acabou. E me pego tentando extrair de tudo uma beleza mesmo que gasta e me pego tentando sorrir sustentada em uma alegria rala e me pego tentando lembrar o que seriam mesmo essas coisas em sua totalidade.

O que sobra quando você sai é um dia calmo que me pede para dar um passo, e depois outro, e mais um, e abrir a porta, e tentar de novo com força e coragem e ser resistente às ondas que me submergem e me sufocam e me afogam até eu não conseguir mais respirar. Tentar de novo no modo natural e abandonar o automático. Tentar de novo sem nunca me acostumar ao cotidiano das perdas e tentar de novo até que um dia seja a última vez, o último primeiro grande encontro das nossas almas, o derradeiro início do fim das nossas vidas.

Mas eu não quero. Eu não me espalho pelo mundo porque tenho medo do vento que passa arrancando partes de mim e tenho medo das pessoas que me envenenam com toda a ganância e com todo o ódio, que se eu parasse uns instantes para observar bem é só falta de amor. Desse amor que também me falta, cuja ausência traz o vento que me reduz a cacos que mais parecem areia. E eu não quero. Que nenhuma lasca minha seja de alguém que só me ame para não odiar, que só me queira para suportar o mundo e que me peça para fazer curativos em suas feridas abertas. Eu também sangro. Mas me contenho. Me comporto. Me comprimo. Mas nunca estanco.

A fome do mundo é tanta, que mesmo todas as migalhas de pão não duram tempo suficiente trilhando o caminho que você deve seguir até me achar. Inutilmente, eu ainda me importo, eu ainda me doo, eu ainda socorro. Corro os riscos, porque, inacreditavelmente, eu continuo tentando: não me perder por aí, não deixar que você se perca por aí.

O resto das coisas do mundo e suas possibilidades de destino querem sempre fazer trocas, o resto das coisas me dá vida, mas sempre quer os meus pedaços e nunca eu inteira. Tento, mas não consigo me fatiar e sair por aí dando pedaços do meu pulmão para ares mais leves, pedaços do meu coração para risos mais despretensiosos, até oferecer quinhões da minha alma em troca de olhares demorados e mais sinceros.


E volto a pensar que se eu der um passo, um passo apenas, eu vou deixar um rastro de vida e vou voltar a existir e ocupar um espaço qualquer no mundo e ocupar um espaço qualquer no coração de qualquer pessoa que, como eu, ainda ame o resto das coisas. Mas eu não quero, eu não posso me perder, eu não posso me esfarelar por aí.

E peço tanto: me queira inteira. Me leve para casa com defeitos de fábrica, arranhões adquiridos com o tempo e toda a leveza que só a completude é capaz de estender. Porque eu, eu tenho medo dos meus pedaços espalhados pelo mundo.

Eu posso muitas coisas sem você. Se eu tomar um banho quente e comprar uma roupa nova, talvez eu possa finalmente querer um pouco de tudo e não muito de uma coisa só. Nada muda no mundo quando você não caminha ao meu lado. Ninguém deixa de espreguiçar só porque você não está aqui, ninguém deixa de molhar o pão no café e de falar com voz idiota enquanto boceja porque hoje você não amanheceu ao alcance dos meus olhos. Mas é só você que me vira do avesso sem perder nenhum grão de mim.

Para não pensar na falta, eu me encho de todo o resto das coisas. E todo esse resto de coisas deixa aos poucos de ser resto e passa a ser minha vida. E no fim das contas o que sou é a lembrança de um velho caminhão de mudanças cheio de quinquilharias, sempre procurando onde descarregar. No fim das contas, o que eu quero é sentir a leveza de um vento que não me deixe morrer a cada segundo longe de você.

7 comentários:

  1. Me derreti e entrei nessas suas linhas. Lindas e intensas linhas. Essas coincidências se multiplicam, hein?! Adorei seu blog, M.! ;)

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  2. curto seu universo particular (aqui).

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  3. eu te leio e me preocupo com o q existe por trás, q vc ñ deixa ver.

    ñ deixe nunca de caminhar.. tem sempre um bom dia que surge no meio do caminho.. as surpresas estão por tda parte. ;]

    =*** carinhosos, pipoquinha

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  4. sempre sou eu qm vem pedir isso... mas... atualiza aaih, vai?

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  5. Vou atualizar, Minduim, vou atualizar... Não sei quando, mas vou. A fé não costuma faiá! =}

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