Café da Rua 8

Açucar ou Adoçante? by Cícero on Grooveshark


Sinceramente, não faço questão de dividir esse momento com você. Não é que eu não sinta mais nada, nem que você me incomode. Não é vazio. Eu estou cheia, quase transbordada. A novidade é a dor que já não vem, nem mesmo quando minha memória me prega algumas peças e traz você na bandeja. Mas tudo bem, sente-se, pode escolher uma mesa e me esperar, levo o teu café sem açúcar e com chantilly. Pode ser divertido, vamos pagar pra ver. Te faço companhia até que você se apague novamente na poeira da cidade. Tudo bem. Os nossos caminhos não se cruzavam há tanto tempo e não existe nisso qualquer sacanagem do destino. Acho até que, se houve algo correto entre nós, foi o destino. Não sou de astrologia nem de religião, mas saiba você que às vezes acredito em destino e de vez em quando rio com ele. E ele de mim. 

A vida prega peças, né? Veja só: você e eu, no mesmo café, depois de tanto tempo. Não sabia que você vinha pro lado norte da cidade a essa hora do dia. Sempre tão previsível em suas fugas e afazeres, tão pontual, não pensei que fosse se dar o tempo para um café no meio da tarde, em plena semana, tão longe do seu tudo. Sempre achei esse lugar tão descontraído e aconchegante, gosto da decoração, da casualidade das pessoas que entram aqui com paletós e blazers nas mãos ou com modestas pilhas de livros que folheiam enquanto bebericam algo quentinho. Tem um sebo logo ao lado, você viu? Gosto dele, também. Não sei por que nunca tentei te trazer aqui, venho há tanto tempo. Será que comentei isso com você? Acho que não. Não sei como é na época de calor por aqui, algo me diz que este é um lugar para vir no frio. Talvez seja pela madeira rústica envernizada dos móveis ou pela iluminação amarelada e baixinha. Você sabe, no calor, prefiro um lugar mais animado, com mesas na calçada, onde se pode preocupar-se menos com o volume da voz.

Você está mais magro, mais elegante e parece menos carregado e desarmado para a vida. Que bom pra você. Preserve assim. Viver é bom quando a gente sabe aproveitar os detalhes. Você tem sabido aproveitá-los? Parece que sim. Você está tão sereno, quase te invejo. Gesticula calmamente, sem tremer as mãos. Eu tremo da boca aos pés. Por quê? Não sei. Você não me intimida. Você me é até familiar, mas de um jeito meio ausente. O que acho estranha é essa sensação de te conhecer só por fotos, como se você nunca tivesse existido para que eu visse, ouvisse e participasse. Ando mais observadora. Te olho como se uma descoberta antropológica estivesse prestes a surgir no seu rosto e trejeito. É bom quando a gente observa a evolução e as benesses do tempo refletidas no rosto de alguém. Você está realmente mudado. Me pergunto o que foi que aconteceu para que o tempo te fizesse tanto bem como eu jamais pude, mas não te pergunto.

Tem coisas que foram nossas na minha casa, móveis dispostos em lugares que você escolheu, roupas de cama que compramos juntos, toalhas bordadas com o meu nome que faziam par com outras bordadas com o seu. Tem tudo isso e é como se não tivesse. Sinto até um pouco de saudade, mas bem pouco -- o tipo de saudade que não me faz improvisar uma desculpa para tocar a sua mão, por exemplo. É como se o meu tato não te reconhecesse mais. E não há nisso tristeza, só um pouco de melancolia, mas uma melancolia quase mansa, que se fosse música jamais seria daquelas instrumentais demais.

Lembrei de uma coisa engraçada sobre quando você saiu de casa. Logo que você bateu a porta, acendi todas as velas e incensos que tinha na gaveta da estante e coloquei a marcha fúnebre pra tocar no iPod, enquanto te imaginava descer o elevador com a única mala restante na mão esquerda, apertando a mão direita com as unhas compridas cultivadas para o violão. Pode rir, foi isso mesmo o que eu fiz quando me dei conta do quão ridículo era aquilo. Eu nem sequer podia dizer que você tinha morrido para mim. Você era cada pedacinho daquela casa. Ela parecia tão grande nos primeiros dias. Hoje, tem muita coisa mudada por lá. Tenho espaços vazios que querem permanecer vazios e novos lugares ocupados por coisas e plantas que você não conhece. Se quiser, pode dar uma passada lá, sei lá, acho que ainda tenho guardada uma caixa de discos velhos da sua antiga coleção. Não lembro por que não avisei que você havia esquecido em algum canto do quarto. Mudei a cama de lugar, agora o dia amanhece atrás da minha cabeça e os pássaros cantam para me acordar. Gosto mais assim.

Estou tão disposta que, se você quiser, até podemos esticar o papo: me conta meia dúzia de novidades sobre a sua vida, eu me importo um pouco e outro tanto balanço a cabeça, um pouco vaga. Não sou muito boa em fingir, então é possível que eu fique reparando na decoração enquanto você contabiliza as suas conquistas, menciona algumas perdas, aquelas coisas todas que se costuma fazer quando há um interlocutor interessado. Pode ser que eu boceje, mas é porque tenho dormido pouco e trabalhado muito. Não será uma indireta de que o papo não tá legal. Não vou ignorar a velha intimidade e nem usar de subterfúgios para ser menos eu, espero que isso não te assuste. Ainda bocejo durante todo o dia quando durmo menos que o necessário, sem tampar a boca, e coloco os pés descalços no sofá. Desejo uma vida tranquila para você, mas guardo os melhores desejos para mim.

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