Avesso do avesso

"Em alguns dias dói. A tristeza puxa os cabelos, arranha a cara, machuca dentro. 
E a gente não tem mais nada pra fazer a não ser dizer que tá tudo bem. 
Porque vai passar, passa. Só que antes de passar maltrata.  
E, entenda, a pior dor é aquela que ninguém vê. Só ela, a tristeza."
(Clarissa Corrêa)


Não é como despertar e se deparar com o avesso. É o contrário. Mas o contrário que não é oposto. É o contrário da surpresa, do soco no estômago, do golpe que te acerta pelas costas. Eu vi tudo de olhos abertos. Vi o mundo girar e fui sentindo enjoo e vertigem ao passo que ia ficando de cabeça para baixo. Eu estava lá, eu vi: foi tudo tão fatal e tão certeiro que não me sobrou o grito, que não me vieram lágrimas, que só me sobrou palidez no rosto e grãos de areia na sola do sapato. Não foi por coragem. Eu não me orgulho. Fiz o que era de ser feito, com o sangue na cabeça, com os olhos secos e os pés seguindo quase que sós e me levando para onde deveriam ir e as mãos se movimentando da forma que deveriam se movimentar. Era tudo rotação, buraco negro e caos. Pouco se via de luz, se ouvia de doce e se sentia de toque. Era tudo solidão, mas não era escuro. Eu enxergava passo por passo. O sol nascia nos pés e morria pouco acima da cabeça.

Hoje, o sol me acordou com um facho de luz vindo da brecha da cortina. Hoje, os pássaros pousaram na minha janela. Hoje, o mundo desfez a volta e tudo o que estava de ponta-cabeça caiu no chão, em volta de mim e qualquer coisa me acertou a cabeça. Hoje, o que era seco molhou, o que era pálido enrubesceu e o que era automático enguiçou. Se não sou eu a me convencer que o facho de luz era o sol trazendo as cores de volta, não seria ninguém. Se não fosse eu a movimentar as pernas para a ponta da cama, impulsionar o corpo com a mão direita, afastar o lençol e tocar o chão com a ponta dos pés já tão gastos e tão feios, não seria você a me acordar, abrir as cortinas e janelas e me mostrar o chão para que eu pudesse pisar e levantar. Mas não é como o avesso da dor. É o contrário do avesso. É travessia, olhos úmidos e resto de vertigem. E também não é coragem. Nem medo. É só um dia depois de outro dia, que você já viveu e sabe como é: alguma paz, alguma dor meio física meio cármica, um tanto de tonteira, muitos suspiros e nenhum sentido. Depois vem aqueles outros dias. E mais outros. Está tudo bem.

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