Na beira


Como traduzir o irracional em palavras? Como explicar as voltas que dei até chegar aqui? Eu não sei como me fiz tão presente sendo tão ausente de mim mesma. Não sei que pontes usei, a que desertos sobrevivi ou por que ruas andei para estar assim tão perto de você que esse tão perto me pede calma enquanto o coração suspira e ameaça saltar corpo afora. Calma, respira, inconsciência não é loucura. O que é inconsistente pode ser fascinante, saiba disso e tente não se espantar com o que está por vir, ou por ir.  Mas para descobrir isso foi preciso dar a alma em troca do que não é mensurável nem passível de tradução. E aqui estamos, eu e minha alma, sem passado ou lembranças que se sobreponham à barreira do agora, tão coladas como se o corpo também estivesse penhorado para acompanhar a alma que antes era tão independente. É aqui, menina, é aqui que os passos devem parar enquanto não souberem para onde seguir. É aqui onde ficaremos até que finde a noite e venha o dia trazer um punhado de sol. Ainda importa o que é deixado para trás e o que despejamos ao redor de nossas pernas cansadas, mas é que apagaram os rastros por detrás de mim e de pouco me lembro antes deste estar aqui, olhando fixo para o seu rosto que nunca foi assim tão doce e nunca foi assim tão frágil e nunca desse jeito tão bonito. Tudo bem, porque por mais que fosse o que fosse, o que acontece agora é a primeira vez. Mas é que talvez não esteja tudo assim tão bem, menina. E por isso enterro os pés na areia e os passos não vêm, e por isso a voz falha num tremer de lábios que não é de frio, ainda que as ondas quebrem no meu calcanhar descalço. Não se preocupe em vir me aquecer o corpo, só deixe de ser imóvel se for para aquecer a alma e para morrer de medo nesse mar de ondas  que te leva direto para o fundo. Mesmo te segurando as mãos com vontade de nunca mais soltar, não posso te guiar pelas profundezas desse desconhecido. O medo do escuro é quase como o medo do trovão: um eu só ouço sem ver e o outro me paralisa. Por muito tempo mergulhar não me exigiu mais do que tenho para oferecer. Bastava tomar como referência o facho de luz que havia acima da minha cabeça e tudo se resolvia com um olhar para cima e uma pausa no mergulho para ir até a margem respirar. Mas esse porto nos leva para  um mar sem margem e sem fresta por onde transbordar. Essa água que nos reflete é o limite, menina. É aqui onde falta o ar e borbulha todos os desejos que lançamos à enxurrada em barquinhos de papel. Aqui sempre foi o limite, menina, mas agora não avisto luz para onde seguir e não sei por onde buscar o ar. Já não sou tão diferente do espelho que te reflete o inseguro. Estou como você, sem saber onde, sem saber como ou porquê, querendo dar um passo a frente e cair no mar, te levando junto comigo para a correnteza.

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