Desconstrução


Também acho que eu era mais sensível, Gustavo, e também mais alegre. Roubaram minha alegria. Não concordo quando você diz que não nos conhecemos mais. A gente nunca se conheceu de verdade. Brincávamos de vida e enquanto era só isso, diversão, as coisas davam certo. Eu fui feliz. Eu fui realmente muito feliz. Mas, veja bem, amor. Amor? Tudo bem, amor não. Veja bem, Gustavo... te chamar pelo nome ainda é estranho... mas veja bem, a realidade não é o doce que pensamos que ela seja. Na verdade, projetamos falsas realidades para fugir da dor. Você não percebe? Nada é como parece. Mesmo o que é ruim não é como parece. Há muito sofrimento em vão nessa vida, Gustavo. E há muita felicidade mentirosa também. Até a sinceridade é relativa. É de costume pensar com o coração, e é por isso que a gente tenta projetar os nossos sonhos na realidade. Se não fosse essa nossa conversa, eu diria que sonhei por esses 15 anos, desde o dia que te conheci até o dia que desconheci. Sonhei que éramos felizes, que éramos inteiros e que não tivemos filhos por não precisar de desculpas para o amor que tínhamos, que temos, que fingimos, que sonhamos, eu não sei mais. Sonhei que quando compramos o nosso apartamento e demos a festa de inauguração, tínhamos conquistado o nosso reino. Sonhei que você era um príncipe e que eu era a princesa da sua vida. Sonhei que nosso pequeno apartamento, que decoramos juntos e pintamos juntos as paredes e as portas, era o nosso castelo. Sonhei que era esse castelo que nos protegia do mundo e que trazia o aconchego para nossa alma cansada. Eu sonhei tanta coisa, Gustavo, que esqueci da realidade. Era você chegar, sentar no nosso sofá vermelho, que a realidade me parecia inútil. Você trazia a fantasia nos passos. Era ouvir o barulho da chave na fechadura da porta que eu arremessava a realidade janela afora. E você bem se lembra que eu não sou de cultivar inutilidades. Quer dizer, eu não sei. Me diga você, Gustavo... você se lembra? De mim, das minhas manias, dos meus medos noturnos? Eu sei o que eu disse sobre a realidade e as projeções, eu sei que não sou o que você achava e que você também não é o que eu pensava. Eu sei, Gustavo, que a minha forma de enxergar as coisas é diferente da sua e que a gente foi incapaz de atingir a telepatia. Mas me responda, Gustavo, pegue como referência as tortas de cascas de abóbora que eu fazia, os sucos com cascas, as agendas de poesia feitas de papel reciclado que te dei de presente. Então, agora você vê que desse amor eu tentei viver, que eu o reciclava todos os dias, que o recriava cada dia mais lindo e eterno na minha cabeça? Mas o amor não se constrói só, Gustavo. Não digo que você nunca participou dele, não é isso que estou dizendo. Mas chegou um dia que você parou e eu continuei. Eu achei que fazia isso por nós, de tola que fui, quando era o meu momento mais egoísta: acreditar que era por nós quando era só por nutrir um medo infantil de solidão. Sabe, Gustavo, eu chorava quando os castelos de baralho que eu fazia desmoronavam. Pois é, tem muita coisa sobre mim que você não sabe. E eu chorei também quando o nosso castelo caiu. O meu mundo foi junto, o mundo que era meu e que há minutos atrás eu jurava ser o nosso. Não estou te responsabilizando pelo fim disso. Novamente, Gustavo, não é isso. Eu só estou falando o meu ponto de vista e provando a minha teoria de que a realidade é relativa, e que ser sincero com o outro é simplesmente expor o mundo particular que arrastamos junto do corpo. A gente enxerga o mundo de fora com referências do mundo de dentro, Gustavo. A realidade é aquilo que a gente cria e que a vivência prova ser verdade, não o que a gente lê nos jornais. Jornalistas são pessoas, Gustavo, eles têm uma vida por trás das notícias que a gente não sabe. E nem disso, de criar uma realidade, eu era capaz. Eu fingia acreditar que não precisava provar nada para ninguém, inclusive para mim. Eu me sabia, me conhecia e me suportava, mas era mentira. E quando as coisas de fora se acabam, algo dentro da gente desmorona. Sim, são lagrimas, Gustavo. Você já as viu tantas vezes... por que a cara de novidade? Mas eu prometo serem as últimas, Gustavo. Eu choro o que está morto dentro de mim. A gente morreu aqui dentro, Gustavo, você entende? A gente, na verdade, nunca existiu. Eu sei que a vida continua e é só por saber que um dia vai passar é que ainda não pulei da janela. Eu só não sabia que éramos tão frágeis e nunca imaginei me despedir de você sabendo que, ao virar as costas, toda a minha referência de vida vai grudada na sola do seus sapatos. Eu sei que estou com a voz embargada, mas não quero mais chorar. Me deixe falar. A minha voz te incomoda, as palavras que eu uso te incomodam e a minha presença na tua frente te incomoda, eu sei, mas se eu não falar, tudo isso vai deixar de existir antes de chegar ao fim. Temo criar em você uma importância maior do que realmente tem o nosso passado. Ser sincero machuca, mesmo quando não se quer machucar. Está doendo muito? Me perdoe. O que eu queria era que você se aprofundasse em cada palavra desse meu discurso, porque era de nós que eu falava. Sim, eu acreditei em um nós e, novamente, não entendo a surpresa. Você me chama de fria e insensível e é incapaz de enxergar a beleza que eu via no nosso nós, Gustavo. Por nós, eu mataria e morreria. Agora, eu preciso construir um novo mundo, um que não seja nosso, mas que seja lindo. Eu preciso, Gustavo, retocar a maquiagem. E preciso de um espelho para lembrar quem eu sou. Por um momento eu pensei ser você, e pensei ouvir de você tudo o que eu te disse. Eu não sei o que você sente, e até isso eu crio. Eu criei você, agora, por favor, me conte que espécie humana é você, que por mais que eu mergulhe fundo nunca encontro. Diga-me, um dia cheguei realmente perto? Digo de quem é você de verdade. Às vezes eu tenho a impressão de que você veste até a alma de terno e gravata, mesmo com você me dizendo que se as pessoas fossem sensatas só usariam roupas no inverno. Eu amei alguém a quem dei o seu nome sem saber se era você. A minha vida, Gustavo, passou de poema para novela mexicana, e até isso eu demorei perceber. Eu não posso mais esperar para enxergar, mesmo com esse medo burro de ficar cega. Olha, mesmo que por agora você não acredite, foi para contar a nossa história que escrevi tanto. E tanto. E não concluí, só molhei as folhas, manchei as folhas cheias de reticências. Em todo fim eu punha reticências – fim de frase, de parágrafo, de texto – e as vírgulas traziam frases intermináveis. Na verdade, eu nunca terminei um texto satisfeita, Gustavo. Sempre fui inacabada. Em toda carta minha pra ti, mesmo que um bilhete de uma linha, era o início ou o meio de algum livro. Possuo vários livros que nunca escrevi. Eu não sei usar corretamente os pontos, Gustavo, e isso em muito me dói. Não dá para tirar conclusões daquilo que não existe, o que a gente cria serve para nos dar referências, serve de um norte, um porto que não é seguro e nem imóvel, é só um ponto que a gente segue pra ter onde ir. Eu ando tão reticente, tão vulnerável e tão assustada, Gustavo, e disso eu sei sem precisar perguntar, você também acha. A verdade tem mais de uma face, são como linhas que se cruzam no infinito. Você não devia me deixar acreditar assim no fim, Gustavo, e não deve nunca me pedir para voltar. O nosso reino ruiu. Nada do que eu disse pode ser verdade para você e, talvez, deixe de ser para mim assim que, finalmente, eu não tiver mais nada a dizer. Mas me conte de você algo que eu ainda não saiba. Ou melhor, conte-me tudo, desde o princípio, porque eu não entendo. Onde foi exatamente que a gente se perdeu?

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