Enquanto você ia


"Eu sou essa gente que se dói inteira porque não vive só na superfície das coisas." 
(Marla de Queiroz)

O bom de não se aprofundar numa relação é não se sentir parte das dores do outro. É ouvir, aconselhar e ser solidário sem sofrer junto. Ela é tudo o que preciso, me faz bem de um jeito diferente, e nem disso sabe. Porque colocá-la a par disso é aprofundar e nós não aprofundamos. Soube hoje que um amigo dela morreu. Ofereci o ombro, as mãos, mas não chorei junto. Um tiro na cabeça. Não perguntei o motivo. Faz três dias que ela não dorme, não come, não vive. Dizendo chorosa ao telefone, me contou que se muniu das últimas forças para me ligar. Disse que queria me ver. Eles deviam ser muito próximos, amigos mesmo, daquele tipo de relação tão cúmplice que se um matasse o outro ajudaria a esconder o corpo. Acho até que, juntos, cometeram pequenos delitos. Não que ela tenha feição de quem pratica crimes por aí,  mas tem os olhos suspeitos, camuflados por um rosto angelical emoldurado por cabelos loiro brancos, retocados de semana em semana. 

Ela me ligou porque não queria ser julgada. Preferiu a mim, uma quase desconhecida, para dizer tudo sem se sentir culpada ou vulnerável à ressaca moral após confessar que o Luís era um filho da puta — exatamente com essas palavras — mas que ela o amava. E o amava justamente por isso, por ele ser um filho da puta que nunca prestou mas que a fazia feliz. "Ele não merecia morrer desse jeito, era muito jovem, lindo e tinha uma vida toda pela frente. Ele só precisava de tempo, um pouco mais de tempo para cair na real e atingir um bom nível de crescimento moral. Ele era bom, só não queria que ninguém soubesse disso." Ela o amava e repetiu isso até cair no choro e chorou até dormir com a cabeça nas minhas pernas. Ficamos assim por horas: eu com as mãos em seus cabelos loiro brancos, ela dormindo um sono profundo, deitada na minha perna encharcada de lágrimas. 

Luci acordou como se não conhecesse a mim e ao meu apartamento. Depois me abraçou forte, muito forte, até os músculos das costas estralarem, me envolvendo toda em seus braços. Um beijo no rosto, um sorriso amarelo, um muito obrigada o seu apartamento é lindo e o café estava ótimo. No hall de entrada, o táxi já a esperava. Eu te amo. Eu também. Se cuida. Me cuida. 

— Posso ligar em qualquer emergência, a qualquer horário, mesmo para dizer que quero pular da ponte principal da cidade? 
— Claro, para tudo, em qualquer horário, mesmo que só para dizer isso. 
— Me liga também, de vez em quando, no celular, que é pra eu ver o seu nome piscando na tela. Não precisa falar nada, nem precisa me esperar atender se não quiser. 
— Eu ligo.

Um outro beijo, agora na testa. O táxi dá a partida e em questão de segundos se perde entre os outros carros. Sinto o peito apertar numa espécie de dor e os olhos marejarem como se fossem independentes do cérebro. Ainda no mesmo lugar, sem dar um passo sequer, sinto o corpo inteiro doer, do fio de cabelo ao que me escapa. Ela me transmite uma paz num silêncio difícil de explicar. Talvez eu conte a ela sobre isso. Da próxima vez, quem sabe. Talvez tudo, talvez nada.

10 comentários:

  1. que curiosidade esse texto me causa.
    isso de não saber se é você ou não.
    parece ser tão verossímil, mas também ficcional...

    "Eu te amo. Eu também" essa frase dá abertura pra muita coisa.

    gostei da história.

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  2. Eu não sou nenhuma das personagens e, ao mesmo tempo, sou as duas. Não sei escrever sem colocar sentimentos, experiências ou impressões minhas, mas esse dia nunca aconteceu no mundo real. Porém, ele foi muito intenso no mundo das ideias...

    Respondi? X}

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  3. Mais que respondido.
    Tenho que voltar a escrever coisas que nunca existiram.

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  4. A julgar por "Um ensaio repetitivo e monótono", que, aliás, não é nada monótono e nem repetitivo, acho que é uma boa ideia, hein? ;)

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  5. é, tou com saudade de coisas desse tipo, que não são nada repetitivas e nem monótonos, apesar dos ensaios.

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  6. É sempre fácil se ver em qualquer um dos personagens de qualquer um dos textos.. o que não é não facilita nada, por outro lado.

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  7. gosto tanto daqui e de vc escrevendo... atualiza?

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