Lusco-fusco

Amanheci antes do dia, ressuscitando vontades mortas. Eu queria que você me visse acordar: camisola branca, pantufas alinhadas no chão, prontas para receber os primeiros passos. Mas nem são cinco da manhã e eu acordei sem vontade de dar passo nenhum. Seria bom se você sentisse a minha falta. Eu poderia te dizer olha, fique tranquilo, eu estou aqui do seu lado, eu canto para você dormir, eu te abraço no fim do dia, eu te passo um café nas noites de inverno, eu te levo para ver o mar e te seguro as mãos na descida da montanha russa, e não, não chora, eles ficam juntos no final. Ou eu poderia fingir que tenho medo de filmes de terror só para você segurar o meu rosto e dizer: não olha para a tela, olha para mim. E sorrir sem graça e olhar nos seus olhos e depois olhar para baixo e te chamar de bobo e te achar lindo preocupando-se com o meu medo infantil de zumbis, fantasmas e possuídos pelo demônio e me assustando com gritos falsos de um exorcismo mal encenado e te pedindo para me colocar na cama e deixar a luz acesa.

Há um século você não telefona. Desde a encarnação passada. Nenhum cartão postal, nenhum poema de Cecília Meireles na caixinha do correio, nenhuma encomenda fazendo tocar o interfone, nem sequer um telegrama, nenhum recado na porta da geladeira. Você vive, caso contrário eu saberia. Notícia ruim chega rápido.

Ontem mesmo encontrei Augusto na banquinha de revistas e ele fez questão de dizer veja como o dia está lindo e quase igual aquele quando esteve com você há algumas semanas passeando de barco e que eu estou muito bonita, de verdade, e que nossa, vestidos longos e óculos escuros me caem tão bem. Faltou me elogiar o brilho nos olhos, a pele de pêssego e a vivacidade dos meus cabelos. “Ele tá te fazendo bem, ein?” Mas estava na cara que entre os vidros de antidepressivos, ansiolíticos e pílulas para dormir não havia nenhuma capsula de amor. E meu cabelo estava preso, e eu permaneci de óculos escuros para me manter imune à falsidade e a minha boca tinha um resto de batom vermelho borrado da noite passada. Para saber mentir é preciso um mínimo de coerência. E amor não é comprimido, não é xarope nem curativo e nem doença que se pega com um beijo na boca.

Você também está ótimo, Augusto. Lembranças à Patrícia. Sim, o meu telefone é o mesmo (mas quase não toca, às vezes acho que estragou), mas o celular eu joguei no rio. A família vai bem. Está tudo bem. Estamos todos bem. Talvez viajemos para o campo no próximo feriado. Pode deixar, eu aviso, eu falo, eu lembro, eu mando. Minha irmã vai gostar de saber que você se lembra dela. O sol está mesmo forte. Preciso ir, deixei o arroz no fogo. Tchau. Foi bom te ver também. Sorrisinho de lábios entreabertos.

Finalmente, eu dei de ombros. Meio minuto depois eu não resisti e olhei para trás: ufa! Ele dobrou a esquina. E eu nem perguntei de você, nem pedi para ele contar mais, nem mandei lembranças, nem. Mas eu queria mesmo dizer que estou sempre aqui por você e perguntar se você lembra que a gente tem um trato. Refrescar a sua memória. Brincar de advinha por telepatia. Quem te deu colo quando a sua gata perdeu o filhote recém nascido, quando você repetiu um período na faculdade, quando a sua mãe praguejou um relacionamento que tinha tudo para ser amor e daquela vez que você deixou o bilhete com o telefone dela cair no bueiro? Você, eu queria ouvir. E depois dizer: eu sempre estive com você. E tudo seria como antes. Para dizer que, poxa, é para ser sempre assim. Você e eu. Tampa e panela. Frio e cobertor. Desejo e consolo. O teu sangue correndo nas minhas veias desde o encontro dos furos em nossos polegares direitos. Um pacto de amor eterno, mesmo que, ainda que, além de.

Você lembra, eu sei que lembra. Eu te ofereci uma caneca de café depois de uma manhã nublada e uma tarde chuvosa, e te levei para assistir filmes numa terça-feira à noite, e te liguei nas madrugadas de insônia para dizer que quando tenho pesadelos penso em você e fica tudo bem. Te ofereci o sofá da sala quando você estava bêbado demais para lembrar como chegar em casa. Mas eu já não sou menina pequena que cabe em qualquer abraço. Além do mais, para quem é gente grande, sentir saudades faz parte da vida. E, sabe, às vezes a gente até se esquece de sentir saudades. E quando lembra é até bom. Saudade de adulto é atestado de sucesso do fazer valer à pena da juventude. Agarro-me às pernas da saudade para não despencar. E quase me esqueço que já não sou tão pequena.

Às nove. Às nove eu levanto, calço as pantufas, preparo um café e vou sozinha olhar o mar. Agora fecho os olhos, abraço o travesseiro, deito de bruços e peço a Deus, por favor, que me dê cinco minutos de sonho e um dia com os dois pés pisando o presente e sem nenhum amor no pretérito, sem nenhuma dor na alma e nenhuma espera na frente do telefone, amém, obrigada, esteja comigo hoje e sempre, em tudo, em todas as horas, que seja um bom dia, que o sono venha, que a Sua paz esteja comigo, que eu mereça o sono dos justos, que eu encontre o sonho dos inocentes, que eu não morra de saudades, que eu não chore até dormir, que eu acorde sorrindo, que Você me dê o aconchego dos corações que perdoam, que eu perdoe, que eu entenda, que eu aceite, que eu esqueça, que Você me acolha, que Você me guie, que Você me ouça e me perdoe e ainda me ame.

5 comentários:

  1. Eu sinto sua falta! Eu te amo tanto. E você é tão importante que não importa o sol poente nem as nuvens nem a chuva nem nada nada nada importa se você tá longe ou se você não existe! E eu tenho raiva vezenquando de você existir porque eras um sonho antes, eras tela, eras qualquer coisa que só em palavras e agora tens voz e carne e osso e pele e abraço e meu Deus existes e isso me deixa com muita raiva porque existes longe de mim. O pior é que pertences à mim e eu pertenço a você e nós não existimos longe uma da outra por isso estamos perto mesmo com o rio inteiro pra atravessar pra eu poder te tocar de novo e dizer como eu te amo, eu te amo muito!

    ResponderExcluir
  2. "Feliz de quem penetre teu mistério
    Mas ela é um livro místico e somente
    A alguns a que tal graça se consente
    É dado lê-la"

    de Caetano pra ocê.
    agradeço a amizade q supera as piores distâncias. sinto mto orgulho d vc, pipoca.

    =***

    ResponderExcluir
  3. As vezes eu penso em você assim.
    Como uma saudade da infância. Como uma amiga imaginária que esteve presente sempre e que nunca teve cãimbra nas mãos pra me dá-las quando precisei.
    Eu fecho os olhos e penso nisso ser verdade, pra eu te ter sempre à salvo, sempre sorrindo e sempre cheirando a roupa limpa, como um sonho.
    Por que pra mim ainda és tela,
    Mas é infinita.

    ResponderExcluir