Conto de cabeceira

"Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta." (Fernando Pessoa)

Antes que fosse embora a primavera, antes que o sol queimasse ou que as folhas secas despencassem do alto da árvore ou que o frio congelasse: ele tinha que ir. Antes que eu entendesse. Antes que o mundo acordasse. Era preciso acabar com o que tinha sido para que o que tinha sido fosse eterno como o que não aconteceu. Era preciso o vazio do criado mudo à ausência de um abajur roxo. Era preciso apagar os dedos dele na minha pele branca de solidão de apartamento.

Película em retrocesso. A cena de cabeça para baixo. Os lábios se afastando, as mãos se recolhendo de volta aos bolsos da calça canoa, os olhos nos olhos retornando à grama no chão. A flor voltando ao botão. Lento. Sem contagem regressiva. Desfazendo indolor as voltas da memória. Na lentidão de pés descalços na areia seca de uma praia deserta. Os ponteiros girando para trás, pressagiando o dia de ócio regado a sucos de maçã. A paz balançando na rede. O pardal sem graça trazendo em cada bater de asas toda a graça do mundo. O mundo por trás das cortinas. A vida além das janelas. O fim pelo início.

É tudo branco como quadro negro sem o toque do giz.

O cenho franze, os cílios vibram. O quarto desfocado, o sol das dez, o corpo em sutis espasmos de alongamento. O dia sem a noite. A vida sem o sonho. Ao lado do criado sem o abajur roxo, um copo de água com açúcar – para atrair as fadas.

O início no fim.

2 comentários:

  1. obrigado por voltar a escrever, pipoca. senti falta.

    esse texto tá bonito dmais viu?
    bjs carinhosos

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