A questão é só de dor

"E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?

E as palavras de fé que nunca foram ditas?

E as confissões de amor que morrem na garganta?"  

(Olavo Bilac)

Percebe-se o endurecimento começando pelos pés, como uma força crescente que coíbe os passos fincados num passado milímetro a milímetro mais desfocado. Um passado que não merece epitáfio, que não exigiu celebração após a morte. Um passado que quando esquecido é mais respeitado. 

Sente-se o endurecimento quando ele chega ao pescoço e estrangula as lágrimas que nem nasceram. Encontra-se o endurecimento quando se acredita que a alma é perecível, que os sentimentos são expostos em feiras de escambo e que amor é sinônimo de carência. Ele se apresenta próximo quando imaginar sussurros cobrindo os ouvidos já não resfria a coluna, nem acelera o peito, nem aquece o inverno dos pés, nem esquenta os dedos e o meio da mão, nem faz vibrar as camadas da alma ou tampouco protege as orelhas da frieza do mundo.

Percebe-se o endurecimento no mesmo instante em que se conforma com o frio nas extremidades do corpo, nas camadas da pele, nos finos tecidos dos olhos. Ele se camufla na confusão entre ingenuidade e ignorância, água e ácido sulfúrico, açúcar e sódio.

Percebe-se que se está prestes a endurecer quando acreditar em alguém é tão difícil quanto acordar de um longo pesadelo.