De onde nasce amor

Texto inspirado no seu Zé, pai da Anastácia e avô da Cyntia 
   
Eu olho para o meu avô e vejo leveza. Vejo um homem sofrido que é ainda capaz de sorrir alegre, de bendizer a vida. Eu olho para o meu avô e sinto que é essa a essência que eu quero herdar e repassar aos meus filhos, para que repassem aos seus filhos, que por sua vez a transferirão aos seus e assim manteremos o segredo da família. 


Ele não é sábio, pois aprendeu com os próprios erros. No entanto, é incontestavelmente inteligente e de uma delicadeza cativante, além de ser dedicado e atencioso. Longe da inocência astuta de criança, meu avô já não questiona. Longe também da frieza dos adultos, ainda se admira com o pôr-do-sol, que enxerga com dificuldade. Ele diz sabendo o que diz: Ê, mas esse Deus é bão demais, fia, fez beleza até nas cousa que cai e que some atrás das nuvem. Esse sol sumindo no horizonte... tem coisa mais perfeita que Deus fez, esse sol? Ah, fia, mesmo que cê diga que tem, eu digo pr’ocê que  num tem, não. E nem há de ter!  


Os olhos dele brilham um verde escuro que me dizem tantas coisas. Olho naqueles olhos e consigo imaginá-lo caindo do cavalo aos dez, ralando-se na cerca da fazenda aos 25, chorando a perda da minha avó aos 61. Quando dona Quirina, minha avó, virou estrela, meu avô chorou por toda uma constelação. Mas ninguém viu. A gente só o ouve contar, nesses fins de tarde, ao redor da cadeira de balanço. Olho aqueles velhos olhos e enxergo a paixão nutrida por quase toda a vida pela leitura, pelo aprendizado. O brilho doce daquele verde-folha me enche de candura quando a boca já murcha, rodeada de barba branca por fazer, põe-se a contar do apreço que aquele coração casto e tranquilo sente pela humanidade. 


Dona Conceição é quem rega as flores de celulose para o meu avô, ele com as vistas já tão gastas de tanto fotografar as distintas belezas pelas retinas. Ela lê dos romances que ele gosta e depois cobra dele algumas das suas muitas histórias vividas. Ele sorri banguela, pigarreia um número par de vezes – coisa de superstição que o Vô Lourenço tem – com as mãos trêmulas, põe fumo no cachimbo, e ganha Dona Conceição e toda a vizinhança na prosa.  


Dona Conceição se chama Conceição das Graças Assunção. Essa é mesmo uma dona cheia das graças, viu? E faz um doce de mamão que, ó, é de se comer rezando. Os meus primos mais novos chegam a brigar pela colher de pau que é mergulhada no tacho de doce durante a preparação. Meu avô presencia a cena e, comovido, fita o céu e cochicha ao vento um por um os nomes de seus netos, à medida que vão falando, de modo a não esquecer-se de nenhum. Um a um, ele ama a todos. Presta atenção na voz serena de Dona Conceição e, sentado em sua cadeira de balanço, parte com os seus verde-folha a encontrar os meus olhos. Ao deduzi-los paralelos aos dele, diz num sorriso: acanhada e jeitosa que só ela, fia. Jeitosa demais...  


Pigarreia, ajunta mais um tanto de fumo no cachimbo, manuseia trêmulo a caixinha de fósforo e fuma o último cachimbo antes do jantar, servido rigorosamente às 19h.


Se existe alguma planta que, mesmo afastado da roça, Vô Lourenço sempre soube fazer da muda franzina uma árvore forte e carregada de frutos, essa planta é o amor. São 85 anos do mais puro amor.
 

3 comentários:

  1. Menina bonita bordada de flor! É aqui que nasce amor, menina.

    ResponderExcluir
  2. Oi marilia, sou eu, diego, seu cinegrafista (hahahahahahaha, essa foi boa né ?) enfim, achei um texto legal, não sabia como te enviar, ai disse que eu podia enviar por aqui, segue ele mais abaixo, não sei se vai gostar, mas é interessante, depois pode apagar esse comentario, até mais marilia, fui.

    ::::::::::::::::::::::::::::::::::::

    O contrário do Amor

    O contrário de bonito é feio, de rico é pobre, de preto é branco, isso se aprende antes de entrar na escola. Se você fizer uma enquete entre as crianças, ouvirá também que o contrário do amor é o ódio. Elas estão erradas. Faça uma enquete entre adultos e descubra a resposta certa: o contrário do amor não é o ódio, é a indiferença.

    O que seria preferível, que a pessoa que você ama passasse a lhe odiar, ou que lhe fosse totalmente indiferente? Que perdesse o sono imaginando maneiras de fazer você se dar mal ou que dormisse feito um anjo a noite inteira, esquecido por completo da sua existência? O ódio é também uma maneira de se estar com alguém. Já a indiferença não aceita declarações ou reclamações: seu nome não consta mais do cadastro.

    Para odiar alguém, precisamos reconhecer que esse alguém existe e que nos provoca sensações, por piores que sejam. Para odiar alguém, precisamos de um coração, ainda que frio, e raciocínio, ainda que doente. Para odiar alguém gastamos energia, neurônios e tempo. Odiar nos dá fios brancos no cabelo, rugas pela face e angústia no peito. Para odiar, necessitamos do objeto do ódio, necessitamos dele nem que seja para dedicar-lhe nosso rancor, nossa ira, nossa pouca sabedoria para entendê-lo e pouco humor para aturá-lo. O ódio, se tivesse uma cor, seria vermelho, tal qual a cor do amor.

    Já para sermos indiferentes a alguém, precisamos do quê? De coisa alguma. A pessoa em questão pode saltar de bung-jump, assistir aula de fraque, ganhar um Oscar ou uma prisão perpétua, estamos nem aí. Não julgamos seus atos, não observamos seus modos, não testemunhamos sua existência. Ela não nos exige olhos, boca, coração, cérebro: nosso corpo ignora sua presença, e muito menos se dá conta de sua ausência. Não temos o número do telefone das pessoas para quem não ligamos. A indiferença, se tivesse uma cor, seria cor da água, cor do ar, cor de nada.

    Uma criança nunca experimentou essa sensação: ou ela é muito amada, ou criticada pelo que apronta. Uma criança está sempre em uma das pontas da gangorra, adoração ou queixas, mas nunca é ignorada. Só bem mais tarde, quando necessitar de uma atenção que não seja materna ou paterna, é que descobrirá que o amor e o ódio habitam o mesmo universo, enquanto que a indiferença é um exílio no deserto.
    Martha Medeiros

    ::::::::::::::::::::

    ResponderExcluir