À vista

"Não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias delas, para a hipótese de a história se extraviar." (Chico Buarque)


"Conheci Gardênia, imagine só, que coisa boa, que alegria!", eu repetia pro compadre meu, Zé Pedrim, ao telefone. Depois de dois encontros desencontrados, chuvas, passagens esgotadas, os corações já não se aguentavam. A longa espera, as trágicas comédias que envolvem as tentativas passadas perderam substancialmente o valor. Só me importava, desde o bilhete dela, mandado pelo irmão, com os dizeres: "menos de vinte quatro horas, menos de uma volta completa do ponteiro principal do relógio para abraçarmos nossos sonhos", que o tempo ficasse ligeiro e seguisse o ritmo da agonia do meu coração e da pressa dos meus passos. Eu fiquei todo com as mãos descontroladas e falava sem parar. Meu amigo Roberto quase que tampou os ouvidos de tanto que eu falava dela. Olha, mas foi lindo, mas tão lindo que eu nem sei dizer.

No instante em que cheguei ao lugar marcado, que, por sinal, era bastante movimentado, avistei o vestido florido e logo pensei: é ela. Gardênia é toda florida. Gardênia é toda flor. Disse-lhe que iria de azul, mas acabei indo de verde. E o medo de ela não me reconhecer? Mas ela... ela veio logo com um sorriso de orelha a orelha, caminhando ao meu encontro, sem que eu tivesse dado nenhum sinal. Eu só exibia um sorriso bobo e incontido. 

O sorriso dela é doce, bem como a voz, que não é só doce, mas macia, como os cabelos castanhos que trancei horas antes de ela se recolher em botão e dormir. E vejam só a ironia: a menina não veio me elogiando o sorriso? Disse que foi por ele que me reconheceu e foi em resposta a ele que sorriu. Para ela, meu sorriso foi o sinal que eu, por nervosismo, não emiti. Você há de imaginar que muitos sorrisos vieram depois e muitos abraços também. 


Na verdade, muitas outras coisas vieram depois de Gardênia e eu sairmos da estação de trem. Entretanto, os sorrisos e abraços não são menos importantes. Pelo contrário, eles foram pontes que me uniram, definitivamente, à minha flor, à Gardênia, moça que eu fiz mulher, mulher que me fez homem e pai de três lindos moleques já crescidos. Lindos porque saíram à mãe.

Eu sou velho tímido, bicho-do-mato, sou letrado porque fui esforçado a vida inteira, e porque meus pais me pouparam da lida na roça e me mandaram para a casa de uma tia, que foi quem me apresentou o prazer da leitura e de como é gratificante saber escrever o próprio nome. Foi pelo amor à leitura que nasceu o amor à escrita, e ambos só nasceram para que eu despertasse o amor de Gardênia. E para que a Flor me ensinasse que amor não é palavra que só se escreve e se fala, que amor de verdade a gen
te nem precisa dizer ou escrever, a gente sente pelo outro e outro pela gente e assim fica bom.

2 comentários:

  1. a simplicidade da sua narrativa me poe cara a cara com a complexidade da vida e da beleza e dificuldade da arte do encontro...

    a argentina tem me roubado amores. preciso dizer q te amo, pra vc não esquecer?

    =*'s saudosos, pipoca

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  2. A Argentina não tem te roubado nada. Você tem tudo o que precisa pulsando entre os dois braços. E ainda tem mais: amor, amor, amor e dois gatos.

    Nem sempre se perde ao ganhar.Você somou sem subtrair.

    Ih! Você pode abraçar o que tem de mim sempre que vier ao Brasil (DF, Taguatinga Sul, sétimo andar daquele prédio antigo, depois do portão cinza, na porta de madeira enumerada por três símbolos dourados).

    Eu não te esqueço.
    Eu não te amo menos. Geografia é geografia, amor é amor.

    Beijos pipocados de saudades!

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