Quando a vida começa

Capítulo I

Compreendeu que precisava continuar. Os cacos no chão, a vodca na mesinha de centro, cinzas e tocos de cigarro espalhados no tapete. O sol das 11h entrando pelas frestas das persianas, incidindo sobre as cinzas, que, dispersas umas das outras, ocupavam fantasmagóricas o espaço do conjugado. 


Celina se levanta lentamente do sofá e olha para a bagunça de sua vida, espalhada por todos os poucos metros quadrados de chão. Os raios solares amedrontam sua visão. Não tomaria medidas drásticas, não se entupiria de antidepressivos e só choraria o necessário, quando soubesse diferenciar necessidade e desespero. Não sabia, coitada.


Ela caminha até o banheiro de olhos fechados, surpreendentemente, sem tropeços, quedas ou esbarrões. Não é a primeira vez. Celina enxerga melhor no escuro. Usa óculos durante o dia com a desculpa de ter olhos sensíveis por serem claros quase transparentes. Tateia a pia, abre a torneira até o limite, enche a concha das mãos e encharca o rosto. Repete o procedimento três vezes e se pergunta se já consegue abrir os olhos para o dia. Algo dentro dela diz que sim.


Alguém dentro de Celina sente-se atraída pelo movimento do outro lado da janela, do outro lado da porta, na avenida principal da cidade. Celina resolve abrir um pouco a janela para constatar se o céu não mudou de cor. Não mudou, continua azul e hoje quase não tem nuvem. Prevê que o dia será quente e sem chuva e quase sente vontade de ir à praia. Fecha a janela, esfrega os olhos, gira 180º da posição anterior e ensaia um espreguiçar quase relaxante. Pensa que, em menos de 24h, fará aniversário. Sente um frio percorrer todo o interno do corpo e recusa continuar amanhecendo. Larga-se novamente no sofá e fixa o olhar no furo da parede, que por seis anos suportou o aparador de um único quadro.


Puxa pela memória, não encontra respostas para o paradeiro do quadro. Lembra-se apenas de que foi presente do próprio autor, um colega do curso de arquitetura que só fazia desenhos abstratos e muito coloridos. Faz um pouco mais de esforço e se lembra do rosto do menino; do olhar baixo, como se procurasse no chão algo digno de ser lido para ela, e das mãos manchadas de tinta segurando o quadro. "Eu pintei a sua alma. Eu não posso deixar você andar desalmada. Toma, Lina, é sua. É seu. Antes de sair de casa, depois de se olhar no espelho que reflete o corpo, olhe para esse, que reflete a sua alma", lembrava e imitava sussurrante a fala do rapaz. Pelo "espelho" do colega, a alma de Celina era mistura de cores quentes e frias, que às vezes se fundiam em espiral, às vezes eram percebidas individualmente em dezenas de gotas assimétricas espalhadas pela tela.


Ela ri, pergunta-se uma última vez pelo destino do quadro, abana o pensamento e se rende ao pedido das pálpebras. Ignora a bagunça e, sem tomar calmantes, dorme tranquila.


Quando acorda, percebe que são 9h da manhã de seu aniversário. Lembra-se de que sonhou colorido. Esfrega os olhos. Vai ao banheiro de olhos fechados, lava três vezes o rosto, escova os dentes. Esfrega mais uma vez os olhos, utilizando-se da pequena toalha que secou o seu rosto. Pendura a toalhinha e sai. Chega à sala. Paralisada, olha o ambiente, analisa e permanece olhando. O olhar vai e volta, de uma ponta à outra: viaja pelo teto, pelas persianas e paredes, pelo chão, por todos os móveis e sujeiras; percorre toda a bagunça. Olha mas parece que não vê.

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